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Tapioca Masculina

por Gabriel Cruz Lima
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Porque yakisoba é a comida do desejo pensei em cozinha-la. Quem sabe a comida oriental não desperte a libido. Quem sabe minha comida preferida não temperasse nosso caldo de emoções calientes. Um papo sobre como meu primeiro salário foi gasto em yakisoba e geladinho, não sei, me parece impressionante para o encontro.

Com essas idéias sou surpreendido pela pouca técnica. O Hortifruti do supermercado me lembra de que não sei cortar repolho. Mas sei cortar cebola e tomate, o que me leva ao jantar dos jantares: macarrão ao molho vermelho.  

Eis que me encontro diante de um rótulo misterioso em frente a uma gôndola, uma marca de molho de tomates com ares de italiana. As especificações do produto dizem: sem conservantes, 0% disso e daquilo outro, e, logo ao lado, grifa: tomates pelados. Não sei o que um tomate pelado significa, mas tem cheiro de saúde e coisa boa. Algum publicitário sorri no inferno. Coloco no carrinho.

Uma senhora, italiana como todos que nos julgam nesse momento, me olha ao fundo do corredor. Acredito que ela era mais velha do que salgado em vitrine de bar. E a velhice, quando não caduca, vira experiência. Finjo que vou reconsiderar o molho diante dos olhos dela. Leio de novo a embalagem, como quem procura fugir daquela suposta Nonna, e reafirmo o vigor dos tomates pelados. Tu não te moves de mim, molho vermelho.

Ela sabe da minha teoria: todos os molhos vermelhos são improviso. Quase ninguém que deseja impressionar compra Pomarola. Eu não sou uma dessas pessoas. 

E aqui me explico: meu leque não é extenso. Macarrão, strogonoff de abobrinha, arroz, omelete. (Estou desenvolvendo um bolo de cenoura para adicionar ao livro de receitas) Poucas coisas, é verdade, mas cada um com seus pepinos.

Na gôndola do outro lado pego também uma caixa de creme de leite, mussarela, mais creme de leite, pimenta do reino. Outros itens para o café da manhã. Não será mais molho vermelho. Todo mundo sabe que molho branco é mais fino. Inclusive a Nonna, que, pela ausência da visão perscrutadora, já aprova logo destarte. Molho branco servido antes e depois da janta. 

Entretanto, a janta não ocorre nas condições normais de temperatura e pressão. Nem comprei velas e vinhos. Cozinhar, nesse caso, é mais um disfarce do que propriamente a alquimia. A gata em questão tem uma festa da empresa, comida e bebida à vontade. Então não faria nenhuma espécie de sentido cozinhar para alguém que, a priori, já comeu e chega na madrugada.

Claro, aqui a situação é a suspensão da crença que o coração propõe. É mais simples meu desejo: eu queria que ela me visse cozinhando. Quem sabe ao me ver ali de toalinha e faca na mão alguma sensação nova brotasse no ar. A intenção doce seria mostrar que Yakisoba, molho vermelho ou molho branco são as coisas mais charmosas do mundo. 

Chego em casa com quarenta sacolas inúteis partindo desse pressuposto mirabolante. Sei que ela demora e que o tempo dela não se avizinha ao meu. Põe aquela do Djavan cantada pelo Xande de Pilares. Temos um intervalo de três horas entre minha chegada e a saída dela do Happy Hour, das quais, no mínimo duas, com certeza, serão o looping de Coração, desejo e Sina.  A última hora serviria para preparar o visual do prato e do espírito.

Abro os botões da camisa e fico de frente com a figura. Eu, ali, sem cueca, com o pau balançando e querendo me sentir bonito. Falha. Reparo naquelas gordurinhas aqui e acolá. Nessa flacidez dos braços e do abdômen efico distorcendo aquilo que não gosto. As maçãs do rosto excessivamente rechonchudas. Carboidrato de noite engorda. Sem macarrão por hoje.

Enquanto ela não chega fico imaginando se ela vai gostar de mim assim: atrapalhado, baixa-autoestima, falastrão. Já está na hora de tocar Tim Maia. Penso que ela partiu antes mesmo de ter chegado.

O interfone toca suspendendo o sonho. Apesar dos protestos cardíacos, gaguejo e digo que sim, ela pode subir.  Toda aquela minha pose programada ladeira abaixo, só uma vaga sensação de que diante dela eu tenho a honestidade de uma conversa fiada e muito tesão.

Do primeiro ao sétimo andar vivi o inferno. Fora a sudorese e a palpitação, minha cabeça deriva naquela insegurança primária. Porque somos amigos há tanto tempo e agora a chance de mudar esse paradigma se coloca delicadamente. Porque ela cobre política e faz piada com goldenshower. Porque ela fica vermelha quando eu digo que ela está linda. Porque ela ouve quando eu digo que quero viver de literatura. Lembro de um tio meu que dizia que homem não chora. Mas se borra de medo?

Então óbvio que a chegada dela causa espanto. A gente fica perdido ali no sofá, jogando um papo molenga sobre como foi o dia, quem fez o que na festa dela. Ela pede desculpa pelo cabelo cheirando a cigarro dos amigos do fumódromo. Digo que vou raspar a cabeça dela e incinerar todo mundo. Ela dá uma risada e eu me perco no raciocínio da língua dela, beijinho sabor limão e cachaça. Fico entre gostar tanto daquele fogo e desabotoar minha blusa.

Por fim, fazemos aquilo que queremos, muito embora não esteja certo de mim. Não da vontade de transar, mas do sexo diante da minha fragilidade. Desse modo, a transa, óbvio, não foi aquilo que eu coloquei na cabeça. Tim Maia toca ao fundo enquanto eu fico com insônia repetindo que a falha nas quatro paredes é uma extensão da frustração culinária. 

Acordo com a dama ao lado e presumo que sua quietude na manhã seguinte é fruto do desempenho pífio. Pergunto o que ela tem. Ela diz que está com um pouco de ressaca, dor de cabeça da caipirinha, de três cervejas.

Ignoro a dor dela e lembro que preciso tomar café para o trabalho. Me levanto da cama e ao abrir a geladeira me deparo com alguns vestígios da noite passada. Está tudo lá, o queijo, o molho branco, a trepada mais ou menos. Mas ali na geladeira também tem outras coisas que eu tinha comprado junto. Aqueles itens de café da manhã que, se não foram planejados, tem toda a dignidade de uma demonstração de afeto genuína. 

Tem uma goma de tapioca e dois ovos. Ligo a frigideira, tiro uma maçã, um suco de laranja e coloco na mesa; lavo um restante de louça e posiciono milimetricamente cada garfo e faca, cada copo e prato. Dois minutos antes de amanhecer

Assim, acordo-a sem pressa, mesa já posta, curtindo a mão nos cabelos, cheirando aquele resto de tabaco, gostando da janela de uma luz ociosa, temperando cada bocejo, cada sussurro em forma de toque,  de uma fome ancestral, de um desejo adâmico para que, enfim, pudesse me expressar como sinto. Está tudo na cozinha. E eu querendo que você quisesse a tapioca.

Vejo ela ali, toda vermelha pela surpresa, e eu com uma vontade de me desculpar, vai que está tudo muito ruim, não sei. Mas me detenho. Humildemente pensando na vida, chego à conclusão de que se não foi a melhor das comidas, o yakisoba do desejo, foi uma tapioca com ovo da sinceridade.


Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.

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